Denúncias falsas e “golpes” com base na Lei Maria da Penha preocupam juristas e expõem falhas na aplicação da norma
- VN Advogados

- 10 de nov.
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Casos de uso indevido da lei vêm sendo relatados em todo o país; especialistas pedem mais equilíbrio entre a proteção às mulheres e o direito de defesa dos acusados

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) é um dos maiores avanços da legislação brasileira no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Entretanto, quase duas décadas após sua promulgação, cresce um debate delicado: o uso indevido da norma em situações onde não há indícios concretos de agressão — fenômeno que alguns advogados e vítimas chamam de “golpe da Lei Maria da Penha”.
Nos últimos anos, diversos casos com grande repercussão na mídia trouxeram à tona o impacto que uma denúncia falsa pode causar. Ainda que raros em relação ao número total de medidas protetivas, esses episódios levantam questionamentos sobre como equilibrar a proteção às mulheres com as garantias constitucionais de defesa e presunção de inocência.
Casos reais reacendem o debate
Em dezembro de 2024, o Senado Federal promoveu uma audiência pública sobre o tema. Entre os participantes estava o empresário Alexandre Paiva, que relatou ter sido afastado das filhas por força de medidas protetivas impostas com base em denúncias que, segundo ele, nunca se comprovaram. O caso ganhou visibilidade e reacendeu o debate sobre o que Paiva chama de “epidemia de falsas acusações”.
“Fui afastado da minha casa e das minhas filhas sem que houvesse sequer investigação prévia. Só depois de meses consegui apresentar provas que desmontaram a narrativa inicial”, afirmou durante a audiência. O processo segue em análise na Justiça.
Em Mato Grosso do Sul, o advogado Ênio Murad também alertou para o uso indevido da lei. Em entrevista ao Perfil News (setembro de 2025), ele destacou que a concessão automática de medidas protetivas — muitas vezes baseada apenas na palavra da suposta vítima — pode gerar injustiças irreversíveis: “A lei é indispensável, mas precisa ser usada com responsabilidade. Do contrário, transforma-se em instrumento de vingança.”
O que diz a lei e onde estão as brechas
A Lei Maria da Penha prevê que o juiz pode conceder medidas protetivas de urgência — como afastamento do lar, proibição de contato e suspensão de visitas aos filhos — com base apenas no relato da vítima, sempre que houver risco à sua integridade física ou psicológica (art. 18).
Essa previsão é essencial para proteger mulheres em situação de perigo real, mas especialistas alertam que o modelo emergencial abre margem para decisões precipitadas.
Segundo a advogada criminalista Marina Vieira, “a urgência não pode suprimir o contraditório”. Ela explica que o acusado só tem oportunidade de se defender após a medida já estar em vigor, o que, na prática, pode gerar consequências graves — perda de contato com os filhos, estigmatização social e danos à reputação.
Nos casos em que se comprova a falsidade da denúncia, o Código Penal prevê punições pelos crimes de denunciação caluniosa (art. 339) e comunicação falsa de crime (art. 340). Projetos de lei tramitam no Congresso para reforçar essas sanções no contexto da Lei Maria da Penha, mas ainda não há tipificação específica.
Equilíbrio entre proteção e justiça
Para a defensora pública Luciana Castro, é preciso cautela ao discutir o tema: “Casos de denúncias falsas existem, mas representam uma minoria. O maior desafio é aprimorar a triagem das medidas protetivas para que o sistema atue com rapidez e, ao mesmo tempo, segurança jurídica.”
Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que, em 2024, o Brasil registrou mais de 500 mil medidas protetivas ativas. Embora não haja estatísticas oficiais sobre o percentual de denúncias infundadas, o debate sobre o “golpe da Maria da Penha” ganha força nas redes sociais e nos tribunais, especialmente em disputas de guarda, separações litigiosas e conflitos patrimoniais.
Quando a lei é usada como arma
Advogados que atuam em varas de família relatam que a lei, em alguns casos, vem sendo utilizada como instrumento estratégico. “Há situações em que uma das partes busca a medida protetiva para obter vantagem em disputa judicial — como guarda dos filhos ou divisão de bens —, o que desvirtua completamente o propósito da norma”, observa o jurista Pedro Lacerda, especialista em Direito de Família.
Ele ressalta, porém, que o problema não está na lei em si, e sim em sua aplicação. “A Maria da Penha salvou milhares de vidas. O que precisamos é de rigor na apuração e punição para quem age de má-fé, sem que isso signifique desamparar as verdadeiras vítimas.”
A discussão sobre o uso indevido da Lei Maria da Penha não deve ser interpretada como ataque à legislação, mas como um chamado à responsabilidade e ao equilíbrio.Garantir proteção imediata às mulheres em risco é indispensável — mas também é dever do Estado assegurar que nenhum cidadão seja punido antes de se comprovar a culpa.
Em um país onde a violência doméstica ainda mata uma mulher a cada sete horas, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, qualquer distorção da lei representa não apenas uma injustiça individual, mas uma ameaça à credibilidade de um dos maiores instrumentos de proteção social já criados no Brasil.






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